sábado, 6 de maio de 2017

DOMÍNIO HOLANDÊS NO BRASIL



(Marco Túlio Freire Baptista e Andrea da Conceição)

1.      INTRODUÇÃO

            O período de dominação neerlandesa no Nordeste brasileiro é um dos períodos mais profícuos de entendimentos, disputas e acordos na constituição territorial brasileira, no entanto estudado e explorado de forma nem sempre adequada.

            Na transposição didática empregada ao ensino fundamental e médio esta questão normalmente é reduzida como uma consequência do período chamado União Ibérica, seguindo a lógica de que estando Portugal e Espanha unidos sob uma única coroa, a República das Províncias Unidas (Países Baixos), recém libertados da dominação espanhola e em guerra com a mesma, invadiram o território das colônias portuguesas/ espanholas, tanto na Bahia quanto em Pernambuco e, ainda, posteriormente, na região africana de Luanda e Benguela.

            Esta visão reducionista do problema acaba deixando de lado questões de extrema importância para o entendimento do período e das infindáveis negociações que levariam a preservação do território brasileiro com a configuração que praticamente atingira durante o período da União das Coroas Ibéricas.

            Desta forma, faz-se necessário a compreensão de alguns fatores, tais como a importância do Atlântico Sul para o comércio marítimo em franca expansão, beneficiando as nações europeias com a exploração imperialista colonial. Da mesma forma, o rearranjo geopolítico da Europa, ocasionado pela Guerra dos Trinta Anos, fez ascender a Inglaterra e as Províncias Unidas como potências econômicas e marítimas que disputavam a hegemonia comercial das colônias e, para tanto, disputavam a primazia no Atlântico Sul.

2.      A IMPORTÂNCIA DO ATLÂNTICO SUL
            A importância econômica do Atlântico Sul talvez já fosse presumida muito antes dele próprio se tornar foco de transação comercial. Os tratados entre Portugal e Espanha deixavam transparecer um forte interesse português em dominar as rotas por ainda serem descobertas.
            É certo que o interesse sobre o rentoso comércio de especiarias das Índias muito cedo, desde o início do século XV com a conquista de Celta, lançou Portugal na epopeia de vencer o Périplo Africano e encontrar uma passagem para as Índias. Mas havia um “algo mais” a ser conquistado que ressaltaria a importância comercial do Atlântico Sul.
            Vencido o Cabo das Tormentas (Boa Esperança) e aberto a incomparável via para o Oriente, logo as suspeitas portuguesas se revelariam de grande acerto. Já garantido pelo Tratado de Tordesilhas, a chegada e posse de Cabral das novas terras em nome da Coroa Portuguesa fariam com que esta via se apresentasse surpreendentemente adequada às grandes viagens de comércio com o Oriente.
            A rota, feita inicialmente por Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral, passava próximo de Trindade, no litoral capixaba e fora aperfeiçoada no século XVII. Na viagem de ida, a baia da Guanabara, nascedouro do Rio de Janeiro, apresentava-se como indispensável ponto de aguada e aprestamento, possibilitando que as naus e tripulações se refizessem da longa jornada e estivessem prontas para seguir para as Índias. Na volta, por sua vez, a visita ao litoral africano, nas proximidades da atual Angola, se fazia indispensável pelos mesmos motivos[1].
            Para a otimização do desempenho das embarcações à vela é importante verificar o sentido das correntes marítimas que no litoral brasileiro empurravam as naus na direção sul e próximo ao litoral africano empurravam as naus no sentido norte garantindo uma navegação de máxima performance para a época. Desta maneira, garantir os dois litorais, brasileiro e africano, era garantir o monopólio da navegação para o Oriente e o rentoso comércio das especiarias.
            Nos séculos seguintes a América e a África experimentaram o processo de colonização, revelando novas riquezas e novas oportunidades. Dos Andes Espanhóis jorravam a prata que abastecia o nascente capitalismo europeu, da colônia portuguesa na América, riquezas se despontavam uma a uma para o comércio mundial: Pau-Brasil, cana-de-açúcar, etc. Da costa Africana, a mão-de-obra negra, escravos que moviam a economia de exportação, principalmente a do açúcar. Desta forma, em meados do século XVII, estabelecia-se um comércio bi-triangular no Atlântico Sul, regular ou ilegal, que despertava grande interesse europeu. Pode-se visualizar um triângulo cujos vértices seriam: os Andes, a foz do rio da Prata e o Rio de Janeiro; de onde a prata andina escoava pelo rio da Prata em trocas plenas com o Rio de Janeiro e para todo o mundo. Um segundo triângulo apresentava-se com vértices no Rio de Janeiro, rio da Prata e Angola; de onde além das trocas de produtos e metais entrava em cena a mão-de-obra escrava que movimentava a economia açucareira. Esta movimentação, plena de bens, fazia com que o Atlântico Sul ganhasse maior importância ainda nesse século[2].
            É certo que a passagem para outros mares só se fazia possível pelo extremo sul dos continentes Africano e Americano; neste último a passagem pelo estreito de Magalhães também permitia o comércio com todo o litoral Pacífico das Américas, fazendo com que o extremo sul do Atlântico fosse a passagem estratégica para todas as grandes ambições comerciais.
            Só pelo que foi visto até agora, o Atlântico Sul já seria uma das porções mais desejadas estrategicamente. No entanto, a primeira metade do século XVII foi marcada por um grande rearranjo geopolítico ocasionado por uma guerra que envolveu direta ou indiretamente quase todas as nações europeias.

3.      A GUERRA DOS TRINTA ANOS
            A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) acabou por desmontar o frágil equilíbrio de forças na Europa, com o desmonte de potências, até então consideradas muito poderosas, e o surgimento de novas potências, as quais ou estavam anteriormente sob domínio de outra ou se localizavam num patamar de segunda ordem. Este foi o caso da Inglaterra e da República das Províncias Unidas (Países Baixos), que ascenderam à condição de grandes potências comerciais, detentoras de uma força naval mercantil e militar invejáveis[3].
            Duas estratégias rivalizaram entre as potências emergentes. Pela parte da Inglaterra, sua estratégia foi marcada pela influência direta no comércio colonial de outras nações, adquirindo preferências e reduções alfandegárias, sem, no entanto, pleitear novos domínios na região do Atlântico Sul (América e África). As Províncias Unidas, por sua vez, viram a possibilidade de adquirir total hegemonia com o domínio das regiões privilegiadas à navegação para o Oriente através da tomada de possessões portuguesas/ espanholas no Atlântico Sul, em ambos os continentes.
            Portugal Restaurado não tinha condições de alavancar o comércio de suas possessões ultramarinas sem demandar apoio de outra nação no tocante a grandes embarcações bem artilhadas. Dessa maneira, e a despeito da Guerra Civil Inglesa, teve de optar pela Inglaterra que passa ter grande entrada no comércio do Reino. Assim, Portugal entrou indiretamente na contenda anglo-neerlandes[4].
            Ambas as potências ascendentes na Europa tinham interesses no Oriente, bem como no intenso comércio realizado no Atlântico Sul. Dominar estas rotas e este comércio significava a primazia dentre as grandes potências.
            A independência das Províncias Unidas da Espanha rendera uma custosa guerra para ambos, o que os fizeram interromper o conflito temporariamente afim de tomarem novo fôlego. Dessa maneira, uma trégua foi acertada entre os dois países em 1609. Durante a trégua os zelandeses (Província Unida) se estabeleceram na costa da Guiana. Em contrapartida, os luso-brasileiros avançaram (com todo interesse da Espanha) em direção a foz do Rio Amazonas, fundando um forte e a cidade de Belém em 1615, barrando a expansão dos neerlandeses para o norte e deixando-os isolados. Dessa maneira ampliava-se os territórios que o futuro Portugal Restaurado reclamaria (veja mapa). Por outro lado, esta pausa no conflito espano-neerlandês também beneficiou plenamente a economia neerlandesa, já que passou a deter entre a metade e 2/3 da navegação entre Portugal e o Brasil[5]. Tal situação despertaria mais ainda a ambição dos neerlandeses, que logo constatariam que o comércio com o Brasil era mais rentoso que o comércio do Oriente, além de ser mais próximo.

4.      A INVASÃO DO NORDESTE
            O conflito hispano-neerlandês foi interrompido por uma Trégua de Doze Anos (1609-1621), durante a qual os portugueses tiveram a oportunidade de intensificar o seu comércio com o Brasil, articulado em vários portos portugueses e espanhóis, formando uma estrutura importante que futuramente garantiria o sustento de Portugal Restaurado[6]. Da mesma forma, o interesse neerlandês em manter a trégua, fez com que o projeto de uma nova companhia de comércio para exploração da América e África, a exemplo da VOC que atuava nas Índia, fosse adiado, afim de não acirrar os ânimos com a Espanha.
            Terminada a trégua, ainda em 1621, foi criada a Companhia das Índias Ocidentais – WIC – e deu-se início a ofensiva contra o Brasil[7]. Talvez a melhor porção fosse o Rio de Janeiro, com seu intenso comércio com o Prata e com o mundo. No entanto, um empreendimento desta magnitude representava graves riscos. A melhor opção se deu na Bahia, com o esplêndido porto natural da baía de Todos os Santos. Por este motivo, os neerlandeses elegeram Salvador como sua primeira empreitada no sentido de garantir o controle estratégico das rotas do Atlântico Sul. Em oito de maio de 1624 desembarcaram em salvador, levando susto e pânico a pouca população que fugiu para as brenhas, deixando para trás todos os seus pertences, inclusive armamentos. Padre Antônio Vieira que aí residia em comissão, deixou um relato sobre o episódio, no qual narra a resistência local até a expulsão dos invasores um ano depois[8].
            Frustrada a tentativa na Bahia com grandes prejuízos, a WIC passou algum tempo em completa penúria. Sua sorte começou a mudar no ano de 1628, com alguns apresamentos lucrativos, mas a grande sorte estava reservada para o comandante Piet Hein. Em setembro, velejando próximo da costa norte de Cuba encontrou duas divisões de navios, compostas por um total de 15 naus, as quais conduziam um fabuloso cabedal para a Coroa Espanhola. Embora sua principal carga fosse prata, num total de 177.537 libras (pouco mais de 80 toneladas), também carregava ouro, peles, pérolas, anil, pau Campeche, açúcar, entre outros produtos. O apresamento atingiu algo em torno de 15 milhões de florins[9].
           Capitalizada, a WIC se lançou a uma nova grande empreitada, a invasão de Pernambuco. Já em fins de 1629 reunia-se em São Vicente uma grande frota expedicionária composta por 35 grandes naus, 15 iates, 13 chalupas e duas embarcações inimigas capturadas, com forças militares compostos de 3780 marinheiros, 3500 soldados e 1170 canhões. Esta força chegou às vistas de Olinda a 13 de fevereiro de 1630, desembarcando dois dias depois cerca de 3000 homens que marcharam sobre a cidade no dia 16[10].
            A Espanha não entregou o Nordeste gratuitamente aos Países Baixos, no entanto sua esquadra havia se degradado fortemente depois de 1625. Neste período os espanhóis sofriam economicamente com a perda da frota de prata, os gastos com a intervenção no norte da Itália e a entrada da França na guerra ao lado dos Países Baixos. Além de algum reforço à Pernambuco, apenas conseguiu mandar uma armada com o objetivo de restaurar o Nordeste em 1637 (comandada por conde Torre). Esta fracassou fragorosamente. Uma segunda, destinada a manter as comunicações no Mar do Norte, foi totalmente destruída no canal da Mancha. Enfraquecida, a Espanha, teve de enfrentar a insurreição da Catalunha e a Restauração Portuguesa em 1640[11].
            Por volta de maio de 1641, as Províncias Unidas resolveram se aproximar de Portugal recém restaurado enviando uma frota de auxílio. Isso insinuava uma tratativa de paz. Matreiramente a Direção da WIC enviou correspondência ao príncipe Maurício de Nassau alertando que não perdesse o tempo que ainda restava antes da assinatura de um tratado de paz, estimulando-o a expandir as conquistas em direção a Salvador. Concordando com a oportunidade, Nassau discordava do objetivo, pois considerava um ataque a Bahia como um desperdício de recursos. Sua opção foi pela África, pois que estabelecida a cultura açucareira em Pernambuco, o que mais demandavam eram braços negros, além do fato de que o comércio de escravos renderia muitos dividendos a todos[12].
Em final de junho, Maurício de Nassau enviou uma frota de 21 navios, comandada pelo Almirante Jol a qual tomou com facilidade São Paulo de Luanda[13]. A reboque desta conquista também se apossou de Benguela, as ilhas de São Tomé e Ano Bom e, ainda, uma fortaleza em Axim, na Guiné[14].
Aproveitando o momento, o Nordeste neerlandês também foi estendido e em princípio de 1642 havia atingido seu máximo desenvolvimento abrangendo sete capitanias: Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Itamaracá, Pernambuco e Alagoas (sul de Pernambuco). De toda a região, Pernambuco e Maranhão eram as mais produtivas, embora a ocupação não tenha ido muito além do litoral[15].
A administração neerlandesa teve relativo sucesso, sendo coroada de maior êxito com o príncipe Maurício de Nassau que se empenhou no plantio da cana e feitura do açúcar. Empenhado-se, principalmente, em fazer com que Pernambuco, Itamaracá e Paraíba voltassem a ser grandes produtores como foram até a invasão. Dos 166 engenhos existentes anteriormente 120 voltaram ao funcionamento, produzindo, de 1637 a 1644, 218.220 caixa de açúcar, ou o equivalente a 28 milhões de florins[16].
            Enquanto os holandeses espremiam o Nordeste, Portugal Restaurado em precária situação era incapaz de fazer frente ao poderio neerlandês. No entanto, a hábil diplomacia portuguesa postergava qualquer decisão mais definitiva quanto às pretensões dos dois países sobre o Nordeste.

5.      NEGOCIAÇÕES PELO NORDESTE
            Após a Restauração Portuguesa diversas tratativas foram feitas em Haia com fins de Portugal reaver o Nordeste. Uma das ideias mais correntes era a compra aos neerlandeses. Portugal não se encontrava em condições de forçar militarmente nenhum país, muito menos os Países Baixos que contavam com uma grande força naval. No entanto, a proposta de compra pareceu ser muito eficiente no sentido de ganhar tempo. Enquanto em Portugal as decisões eram tomadas apenas pelo rei e, no muito, por alguns ministros, nos Países Baixos estavam envolvidas cerca de 2000 pessoas somando-se as diversas câmaras das repúblicas constituintes[17]. Isso era traduzido em muito tempo para que se tomasse qualquer decisão, beneficiando Portugal que na verdade preferia protelar o problema.
            Em meados de 1645, o embaixador português em Haia foi surpreendido pela ordem de D. João IV de sustar discretamente as negociações de compra do Nordeste. Ocorre que havia indícios de insurreição em Pernambuco contra os holandeses. O governador Antônio Teles da Silva concebera um plano, no qual os contingentes de Filipe Camarão (indígenas) e de Henrique Dias simulariam uma deserção, atravessariam o rio São Francisco e se juntariam aos soldados que Fernandes Vieira recrutaria no local. Os soldados veteranos que se encontrava na Bahia depois da perda do Nordeste se ofereceriam ao governo neerlandês de Recife para combater os insurretos e, na verdade se juntariam a eles. Simultaneamente o porto de Recife seria bloqueado pelos galeões de Salvador Correa de Sá que vinham do Rio de Janeiro em direção a Lisboa. Caso o plano desse errado, as tropas deveriam incendiar todos os canaviais e engenhos a fim de quebrar a economia neerlandesa no Nordeste. O plano parecia ser bastante eficaz, no entanto, Salvador de Sá, estando ancorado em Recife, recusou-se a executar sua parte e acatou a ordem neerlandesa de seguir para Lisboa. Felizmente os insurretos conseguiram, mediante suborno, a rendição do Cabo de Santo Agostinho e passaram a dominar todo o interior do Nordeste neerlandês. Dessa maneira os neerlandeses ficaram circunscritos em Recife, ilha de Itamaracá, forte Cabedelo na Paraíba, forte Ceulen em Natal e Fernando de Noronha.
            Como a insurreição teve êxito apenas parcial, Portugal ficou numa situação mais difícil para manobrar diplomaticamente. Embora D. João IV negasse veementemente seu apoio à insurreição e prometesse punir os insurretos, estava cada vez mais difícil esconder a intencionalidade portuguesa. Os Países Baixos, por outro lado se tornavam cada vez mais intransigentes, já que ficava claro as manobras portuguesas de ganhar tempo. Dessa forma, os neerlandeses intensificavam suas exigências, com muitas variação e modalidades, no entanto passaram a exigir a entrega do Nordeste para que não fosse declarado guerra a Portugal.
            A situação portuguesa era muito delicada, pois restaurado estava com uma esquadra ínfima e sem recursos para se armar, mantendo seu parco exército na fronteira castelhana para evitar o avanço dos espanhóis em seu território e uma nova anexação, com perda de sua soberania.
            De fato, a questão chegou em seu ponto mais crítico depois do envio da esquadra de Vila Pouca para a Bahia em 1648, a qual tinha por claro objetivo dar apoio aos insurretos. Da mesma forma os Países Baixos enviaram também uma esquadra para Recife, comandada por De With, a qual, por sair com certo atraso, acabou sendo pega por fortes tempestades, perdendo sua principal nau e acometida de diversas epidemias. Tal foi a infeliz viagem que a esquadra neerlandesa chegou praticamente fora de combate a Recife. Toda esta situação enfureceu os neerlandeses que estava a ponto de fazer guerra a Portugal. Para piorar a situação estavam em plena tratativa de acordo de paz com a Espanha.
5.1. O “PAPEL FORTE” DE VIEIRA
            Com a degradação das relações de Portugal e Países Baixos, decorrentes da Insurreição em Pernambuco e também do envio da esquadra de Vila Pouca (supostamente em defesa do projeto insurrecional), os representantes de Portugal nas negociações de Haia submeteram um texto de autoria de Souza Coutinho, padre Vieira e Feliciano Dourado, no qual se comprometiam a entregar o Nordeste neerlandês, entre o Rio Grande e o rio Sergipe, além de estabelecer indenizações e outras vantagens para as Províncias Unidas. A questão que envolvia era a de soberania de Portugal. Visto que a guerra com os Países Baixos levaria a necessidade de deslocar tropas da fronteira com a Espanha para dar combate aos novos declarados inimigos e o desguarnecimento da fronteira certamente daria a Espanha a oportunidade de invadir Portugal e anexá-lo novamente.
            O texto do acordo de Haia (19 de agosto de 1648) foi submetido a D. João IV para ratificação. Nesta oportunidade, o grupo liderado pelo Procurador da Fazenda, Fernandes Monteiro, (ao qual Vieira chamava de Valentões) e que estava empenhado em não entregar o Nordeste e fazer a guerra se preciso fosse, promoveu uma réplica apontando diversos fatores em que supunham a necessidade de manutenção da área do Nordeste holandês para os portugueses. Esta réplica foi enviada por D. João IV ao padre Antônio Vieira que produziu sua tréplica, rebatendo cada ponto do documento anterior, em prol da entrega do Nordeste. Os principais temas abordados foram: 1) a questão religiosa, já que na região habitavam cerca de 80 mil súditos católicos; 2) a ética em não abandonar os insurretos já que o levante havia iniciado com a “aquiescência” da Coroa; 3) o caráter desigual em prol de vantagens para os Países Baixos, situação desprestigiava a Coroa Portuguesa; e 4) a falta de garantias de que, mesmo entregando o Nordestes, os “discípulos de Maquiavel” (neerlandeses) não provocariam incidentes que levaria a quebra do acordo e à guerra. A todos os argumentos relativos a estas questões, Antônio Vieira rebateu com sua retórica racional, propondo soluções apaziguadoras e apontando vantagens de seu ponto de vista para a entrega do Nordeste. Esta tréplica escrita passou a história com o nome de “Papel Forte”. No entanto, não teve força o suficiente para convencer D. João IV a entregar o Nordeste.

6.      RETOMADA DE LUANDA
            A esquadra se Salvador de Sá chegou ao Rio de Janeiro a 23 de janeiro de 1648, juntamente com os cinco galeões da Armada Real enviados de Salvador pelo conde de Vila Pouca. No Rio, Salvador conseguiu arrecadar a generosa quantia de 60.000 cruzados para financiar a expedição para a África. Embora houvesse discordância entre se deveria seguir viagem no intento de recuperar Luanda ou se manter para defesa do Rio de Janeiro num eventual ataque neerlandês ou mesmo socorrer a esquadra da Bahia em caso de maior necessidade ou de chegada de reforços das Províncias Unidas, Salvador decidiu-se pela África, talvez impulsionado por seu espírito comercial, já que a garantia do suprimento de braços escravos era a maior garantia da produtividade da colônia, além de ser em si um excelente negócio[18].
            Aprestada a esquadra, partiu finalmente do Rio em direção a Luanda em 12 de maio, com quinze navios e suprimento para 1400 homens. O plano era escoltar a frota de açúcar até Ascensão, de onde está seguiria sem escolta para Lisboa. Ao deixar o comboio de açúcar, a frota de Salvador de Sá seguiu seu destino, avistando a costa africana em 12 de julho. Conforme a versão oficial Salvador de Sá pretendia atacar Quicombo, onde fundaria uma fortaleza e seguiria daí por terra para encontrar os defensores de Massagano.
            Em Quicombo, ao anoitecer de primeiro de agosto (1648), enquanto desciam suas âncoras, a frota foi atingida por um violento maremoto. A nau São Luiz foi feita em pedaços e afundou juntamente com mais de 200 homens, entre os melhores soldados da expedição. Também um destacamento, mandado à terra para reconhecimento e captura de prisioneiros para servirem de informantes, foi pego por violento terremoto que o dizimou. Os poucos sobreviventes foram mortos e devorados por canibais. Diante de tais adversidades Salvador de Sá, tomado por um ímpeto inigualável de combate, decidiu-se por abandonar seu plano inicial e atacar diretamente Luanda, fazendo vela naquela direção e ganhando a vista em 12 de agosto. No momento de sua chegada haviam apenas dois navios holandeses que se fizeram ao mar para reconhecimento. Ao descobrir a identidade da frota preferiram fugir devido a franca desvantagem numérica, deixando Luanda desguarnecida pelo mar. Salvador de Sá contara com boa parcela de sorte, pois que a guarnição estava reduzida a menos da metade devido ao deslocamento de 250 homens para o forte do Morro. Após breve tentativa de negociar a rendição da guarnição holandesa, o comandante resolveu atacar as forças neerlandesas que possuíam também reforço de soldados da rainha N’Zinga.
            O ataque foi desferido no dia18 de agosto contra o forte do Morro, pouco antes do sol nascer. Por um erro de sincronismo, as três colunas de soldados que deveriam fazer ataque simultâneo chegaram defasadas na hora, possibilitando que a guarnição resistisse e infringisse pesadas baixas. Salvador teve de recuar, perdendo cerca de 150 homens entre os 400 que levara à terra. Depois de sofrer pesada derrota Salvador Correa de Sá foi surpreendido pelo pedido de rendição de toda a guarnição holandesa, inclusive os postos avançados de Kwanza e Benguela. Assim acertou-se a retirada de todos os neerlandeses das possessões em Angola. Portugal voltava a ter a exclusividade do mercado de escravos africanos[19].

7.      A ESPERA POR UM MILAGRE
     Mesmo nesses momentos mais críticos da diplomacia portuguesa, D. João IV, apoiado por muitos em sua terra, recusava-se a entregar o Nordeste, sua “vaca de leite”. A chegada de boas notícias reforçaram este posicionamento. Do Brasil chegavam a Portugal notícias animadoras com a vitória na Primeira Batalha dos Guararapes (18 e 19 de abril de 1648), onde o exército luso-brasileiro infringiu pesadas baixas à guarnição da WIC. Os registros contavam com mais de mil mortos entre os inimigos, destes mais de 180 oficiais, além de cerca de 500 feridos[20]. Além disso, chegava a notícia da retomada de Angola por Salvador Correa de Sá e Benevides, garantindo o rentoso comércio de escravos da África.
A situação de Portugal continuava delicada pela crescente possibilidade de declaração de guerra pelos neerlandeses. A estratégia continuou a ser oferecer vantagens e não ratificar, ou seja, postergar mais ainda na espera do milagre.
O ano de 1649 inicia com a notícia da derrota da WIC na Segunda Batalha dos Guararapes (19 de fevereiro de 1649)[21]. A vitória luso-portuguesa no Brasil foi maior ainda do que a do ano anterior. Foram mortos 173 oficiais, entre esses o comandante em chefe coronel Brinck, além de 855 soldados e 90 prisioneiros. Num total de 1045 homens fora de combate. A guarnição neerlandesa no Nordeste estava desmantelada, só permanecendo graças a uma rígida disciplina militar que lhes era imposta[22].
Ao chegar em Haia as notícias da derrota na Segunda Batalha dos Guararapes, as Províncias Unidas definitivamente mudaram de atitude com relação a Portugal. Passou-se a uma atitude somente defensiva no Brasil, já que um grande socorro demandaria um esforço aparentemente demasiado, pois a WIC estava destroçada em termos ofensivos, e uma atitude ofensiva contra Portugal, emitindo-se cartas de marca contra o Reino, ou seja, lançando mão abertamente do corso para atacar Portugal*. Ameaçou-se um bloqueio e bombardeio de Lisboa.
Em Portugal, uma onda de otimismo levou D. João IV autorizar a criação da Companhia Geral de Comércio (8 de março de 1649), catalisando os recursos dos cristãos-novos numa empreitada comercial que fortalecia o comércio com o Nordeste, além de ser um grande reforço na contenda contra os neerlandeses. O aprestamento da Companhia se deu em ritmo acelerado, de forma estar pronta para partida em novembro [23].
            Por fim, o enfraquecimento dos Países Baixos e a necessária aproximação de Portugal com a Inglaterra (em sua defesa), garantido privilégios comerciais, acabou por prevalecer a estratégia inglesa de domínio do Atlântico Sul.
            Enquanto as coisas melhoravam para Portugal, o esperado milagre começava a aparecer. A oligarquia de Amsterdã recusava-se a fazer guerra contra Portugal devido sua dependência do sal de Setúbal. Uma forte crise institucional entre as províncias despontava e chegaria seu ponto mais alto no ano seguinte. A desmobilização de contingentes militares passou a ser o tema central das Províncias Unidas, deixando o Brasil para segundo plano. A armada de De With retornou inesperadamente em começo de 1650, praticamente toda a armada sublevou-se do comando de Recife[24]. Sem o dinheiro da província da Holanda que se recusava a arcar com os custos de nova empreitada bélica, a guerra e bloqueio de Lisboa ficou só no papel.
            Então chegou o tão esperado milagre! Foi desencadeada a Primeira Guerra Anglo-Neerlandesa (1652-1654). Apesar das Províncias Unidas terem um sucesso relativo no mar do Báltico, a guerra foi desastrosa para elas no mar do Norte. Os ingleses submeteram os neerlandeses a um pesado bloqueio e severos ataques que lhes custaram mais de mil embarcações.
            Com a franca degeneração da economia e marinha neerlandesa e a falta de apoio a WIC, as Províncias Unidas perderam definitivamente o Nordeste brasileiro. Os acordos com a Inglaterra necessários para Portugal garantir a sua soberania deram vantagem comerciais para os ingleses que persistiria por mais de um século. Firmado o Tratado Anglo-Português de 1661, com o casamento de Carlos II com D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV e D. Luísa de Gusmão, sob proteção militar da Inglaterra, Portugal veria sua independência reconhecida pela Espanha em 1668, embora tenha vendido a “sua alma” econômica para o agressivo comércio inglês[25]. No entanto, garantia-se assim a posse definitiva do Nordeste.

CONCLUSÃO
A Invasão neerlandesa no Nordeste brasileiro, que se dera majoritariamente pela disputa de mercado e de hegemonia comercial entre Inglaterra e as Províncias Unidas no Atlântico Sul, determinou um dos mais complexos capítulos da formação territorial brasileira.
Portugal Restaurado se constituía num ente extremamente frágil política e militarmente. Reconquistada sua soberania tendo perdido boa parte da sua “vaca de leite”, Portugal lançou mão de uma engenhosa e matreira diplomacia que foi capaz de efetivamente postergar a decisão de guerra por parte das Províncias Unidas por mais de uma década, esperando que um milagre acontecesse, que D. Sebastião ressurgisse das águas para salvar a monarquia. Mesmo nos momentos mais críticos quando uma decisão unânime das Províncias Unidas poderia ter dado cabo não só do Nordeste, mas da própria soberania de Portugal, sua diplomacia, vacilante externamente, mas firme internamente, garantiu a sobrevivência de ambos, Portugal e Brasil, postergando decisões sob mil pretextos.
            Conta-se em grande medida a vontade do colono brasileiro, que lutando por suas terras e seus lares, foram capazes de pressionar, conter e finalmente expulsar os exércitos da WIC, primeiro dos interiores depois do litoral e de Recife.
Sobrevindo o milagre, a guerra anglo-neerlandesa, mais uma vez a inexorável roda da história fez do acaso (ou a interferência de um processo histórico em outro) o timoneiro dos acontecimentos que garantiram a vitória portuguesa e a manutenção de um grande território que constituiria o Brasil.
Mapa Portugal restaurado - 1640
Fonte: SOARES, José Carlos de Macedo. Fronteiras do Brasil no Regime Colonial. Coleção Documentos Brasileiros, v. 19. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1939.


REFERÊNCIAS
BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola. Coleção Brasiliana, v. 353. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973.
EDMUNDO, Luiz Tavares. Brasil lindeiro. Revista Navigator, v. 8, n. 15, 2012.
LOBO, Antônio da Roza Gama. Noções geraes sobre o Direito das Gentes. Lisboa: Typographia da Revista Universal, 1853.
MELO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil; Portugal , os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011.
POMBO, Rocha. História do Brasil. V. 1. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1967.
SOARES, José Carlos de Macedo. Fronteiras do Brasil no Regime Colonial. Coleção Documentos Brasileiros, v. 19. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1939.
VIEIRA, Antônio, Pe. A invasão holandesa na Bahia. Ensaios, Série miniatura, Salvador: 1955.
WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial holandês no Brasil. Recife: Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, 2004.


[1] TAVARES, Luiz Edmundo. Brasil lindeiro. Revista Navigator, v. 8, n. 15, 2012, p. 29.

[2] TAVARES, Luiz Edmundo. Notas de sala de aula.
[3] TAVARES. Luiz Edmundo. Anotações de aula.
[4] MELO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil; Portugal , os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011, p. 201.
[5] Ibidem, pp. 23-24.
[6] MELO,  2011, p. 21.
[7] Ibidem, p. 26.
[8] VIEIRA, Antônio, Pe. A invasão holandesa na Bahia. Ensaios, Série miniatura, Salvador: 1955.
[9] WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial holandês no Brasil. Recife: Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, 2004, p. 93.
[10] WÄTJEN, 2004, p. 101.
[11] MELO, 2011, p. 27.
[12] WÄTJEN, 2004, pp. 183-184.
[13] Ibidem, p. 187.
[14] MELO, 2011, p. 6.
[15] WÄTJEN, op. cit., pp. 193.
[16] Ibidem, p. 197.
[17] MELO, 2011, p. 50.
[18] BOXER, 1973, pp. 266-267.
[19] BOXER, 1973, pp. 269-280.
[20] POMBO, v. 1, 1967, pp. 462-464.
[21] MELO, 2011, p. 168.
[22] POMBO, Op. Cit., p. 472.
* “Dos corsários. Chama-se corsário os navios dos particulares, armados em guerra, que tem autorização de um governo para atacarem a marinha da nação inimiga. O emprego dos corsários é o único meio eficaz de vencer um inimigo superior em forças navais. Porém para que este meio d’agressão seja admitido pelo direito das gentes, são precisas certas e determinadas condições:
1°. Todo corsário deve munir-se duma licença do seu governo, que se chama carta de marca, ou comissão de guerra; (...)”. (LOBO, 1853, p. 285-286)
[23] MELO, 2011, p. 173.
[24] Ibidem, p. 176.
[25] Ibidem, p. 247.

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